quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Chuva

ACORDOU aquela manhã querendo não sair da cama, feliz porque podia se permitir essa pequena regalia. Pegou o livro iniciado na noite anterior, uma espécie de romance fantástico (se assim podia nomeá-lo), não tão intelectualmente interessante, mas que conseguira prender sua atenção a ponto de já ter chegado na página 180. Mais uma dessas coisas idiotas e viciantes, que preenchiam sua cabeça quando não queria pensar em nada substancial. Dia perfeito, já que desejava fazer absolutamente nada, a não ser, coisa que adorava, ser levada pelos mais diversos pensamentos - é próprio dos signos de água, alguém já havia dito. Riu e se espreguiçou demoradamente. Aliás, fez tudo com cuidado, sem pressa, muito diferente da rotina tumultuada e estressante que lhe era familiar. A calma a incomodava. De certa forma, não sabia muito bem como lidar com... isso. Sua ânsia de movimento vinha de querer "aproveitar o dia", apesar de saber que aquilo acabaria mal. E, obviamente, ela se perdia em meio a torturas cotidianas: precisava desacelerar, recusava trabalhos, convites, concentrava-se em apenas uma tarefa. Mas terminava sempre deprimida. Precisava do caos, da confusão - de idéias - para agir. Rolou pela cama procurando não pensar em nada. Inútil. Há muito havia abandonado a intenção de nada fazer daquele dia, como era perceptível. Lá fora chovia, ora suave, ora abundantemente. Sentiu uma enorme vontade de sair, olhar a chuva, deixar-se tocar por ela. De repente, lembranças diversas começaram a invadir sua mente. Outros tempos, outros dezembros. E então ela entendeu. Era isso (o sentido da chuva? Da vida, talvez? O quê?): acumular lembranças, sentimentos, sensações, guardá-los tão secretamente que se torna fácil esquecê-los. Ser surpreendida por eles, em dias de chuva, ou não. Por ora bastava. Cedeu e entregou-se a essa outra pequena regalia.